" A inquietude não deve ser negada, mas remetida para novos horizontes e se tornar nosso próprio horizonte."
Edgar Morin

domingo, 24 de abril de 2011

AJUDA-NOS A LAR OS PÉS


                                                              
                                            
                           O ritual do lava-pés, na liturgia, é conhecido desde a mais remota antiguidade e foi prática de papas, bispos e sacerdotes de todas as épocas. “Também imperadores e reis praticaram o lava-pés como sinal de serviço aos seus súbditos”. Desde o século IV reconhece-se o ritual do lava-pés no Ocidente com exceção de Roma e a partir do XVII Concílio de Toledo, da Espanha, no ano de 694, estabeleceu que o lava-pés devesse ser realizado em todas as igrejas católicas do mundo inteiro, na Quinta-Feira Santa, para assemelhar-se ao gesto de Jesus. Em Roma, o “lava-pés” na Quinta-Feira Santa generalizou-se a partir do século XI.
                         A cerimônia litúrgica do lava-pés permanece em prática, quando na Quinta-Feira Santa, diante de um sacerdote, assistido por dois ministros, lava o pé direito de 12 homens, clérigos ou seculares, em celebração do que fez Jesus a seus discípulos, na Última Ceia.
                          Antes da festa da Páscoa, Jesus sabia que tinha chegado a hora de passar deste mundo e voltar à casa do Pai. Durante a ceia, Judas Iscariotes, filho de Simão, já tinha o propósito de entregá-lo aos romanos. Jesus, “antes da partilha da ceia”, levantou-se da mesa, e começou a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los. “... Ao chegar a Simão Pedro, este lhe disse: Senhor, tu me lavas os pés?. Jesus respondeu-lhe: o que estou fazendo não o entendes agora. Mais tarde o compreenderás. Jamais me lavarás os pés, disse Pedro. Jesus respondeu: se não te lavar os pés, não terás parte comigo. Simão Pedro disse: então, Senhor, não só os pés mas também as mãos e a cabeça. Jesus lhe disse: quem se banhou precisa lavar só os pés, pois está todo limpo. Vós estais limpos mas nem todos. Jesus sabia quem havia de entregá-lo. Por isso disse: nem todos estais limpos.” (São João, XIII, 1-11).
            
                 Ao debruçar sobre a temática acima, não deverá considerar se a mesma trata-se de um ritual litúrgico, um contexto histórico, uma tendência doutrinária e ou ideológica, certamente o oportuno, para o momento, será reportar-se-á a um instigante momento de introspecção.

                O que interessa, no entanto, é posicionar-se enquanto sujeito da ação, sobre a mesma ação executada, com relatividade temporal, por “um homem” chamado “Jesus” ou Yeshua, em hebraico, que antes de celebrar a “Santa Ceia”, veio a lavar os pés dos que se encontravam presentes naquela reunião.

              Enfim, que ao colocar-se nesta determinada condição, venha ocorrer uma eclosão reflexiva sobre as práticas morais apregoadas por nós, homens sem asas e aflitos, deste mundo tumultuado, pelos tempos chegados de representativas transformações.

               Se caso estivéssemos diante da desafiadora realidade sabida, percebida e vivenciada por Jesus, como as humilhações que sofreria, tal como a traição que procederia, a dor que o aguardava no madeiro insolente, lavar-se-ia os pés “daqueles” – das exceções - que debilitam seu desempenho, como: estadistas egoístas e impiedosos que declinam vidas pela e para a ampliação, manutenção e detenção do poder; governantes inóspitos e legisladores fisiologistas, corporativistas e corruptos que se tornam exterminadores de almas, as quais lhe foram confiadas para saciá-las da fome e da sede de políticas públicas “executáveis” para saúde, educação, segurança, trabalho; defensores e magistrados ausentes e indiferentes às causas cidadãs aprazíveis à justiça social e institucional; clérigos, pastores, expositores espíritas, que são paradigmáticos na retórica, mas desertores da práxis cristã no cotidiano laico; financistas e empresários que se lambuzam no lucro farto em prol das benesses do capital versus trabalho, menosprezando o dever da devolução social e sabotando sua própria consciência racional na preservação do ethos ambiental; cientistas céticos e desavisados que manipulam a vida sem comparência de ética e responsabilidade, negando o avançar científico sem agressão às Leis Naturais; os comandantes da indústria do entretenimento que promovem reality shows com permissividade nociva e vulgar, no que tange à exposição pública pessoal, e, em que a estética sobrepuja a ética e os valores humanos; os preconceituosos que ferem os preceitos culturais de igualdade e liberdade nos diversificados aspectos humanos, camuflando e utilizando a violência simbólica como uma forma de disfarça-la? Lavaríamos e enxugaríamos estes pés?

            Mas, não tão distantes destes pés maculados, acima, que poderiam ser lavados ou não, como Jesus preconizou em seu extremado ato de humildade, “outros pés” sórdidos devem ser colocados em evidência, para, ainda, como sujeitos reflexivos de uma possível ação cristã saber se entre eles possam estar os nossos, como por exemplo: dos que não educam os filhos através do exemplo; os que desestabilizam relações pelo ciúme e a indiferença; os que não respeitam o limite e a dor do outro; os que julgam e apedrejam atitudes do fraco; os que se vestem de impiedade para exterminar o decadente; os que não respeitam a opção e o pensamento do próximo mais próximo e do mais distante; os que não são mansos e pacíficos; os que fomentam o fel da calúnia que amarga e maltrata o coração carregado de culpas; os que não têm atitudes de perdão e indulgência irrestritos; os que tiram proveito do que não lhes pertencem; os que envaidecem humilhando; os que roubam a paz, a tranquilidade, os sonhos dos camponeses da vida.

            Onde e como estão nossos pés? Sujos ou limpos? Quem os lavaria e os enxugaria?  E nós?  lavaríamos os dos nossos irmãos que ainda estão dormentes, talvez como nós, em sua própria paixão? Pai! Ajuda-nos a lavar os pés da nossa estreita sabedoria, desagregada paz, insensata vaidade, violenta cupidez.

            Em um planeta acerbado de acontecimentos, perfil típico das grandes fases de transição histórica, em todas suas nuances: econômica, política, social, cultural, científica - tecnológica, ideológica, religiosa, na iminência teleológica de um pós-contemporâneo, nenhum homem, de pés limpos ou sujos, que se neguem a lavar os pés uns dos outros, desprender-se, não abaixar, e também rebaixar-se ausentará da limpeza d’alma.

           É sabido que todas as contravenções morais e éticas neste período transitório serão aniquiladas pelas próprias mudanças, ou aneladas pelo nosso querer contrito de homens, que se encontram em um processo de metamorfose espiritual.

             Finalizando, é oportuno realizar menção ao texto, publicado em Abril de 2005 pelo periódico "Companhia" dos padres jesuítas do Centro Cultural de Brasília, aborda a cerimônia do lava-pés e seu papel no comportamento do homem atual e na preservação de assimetrias sociais: “... Não é um acaso que o simbolismo da humildade do Lava-pés preceda cronológica e logicamente o simbolismo da partilha da Última Ceia, pois a relação de solidariedade (partilha) é consequência da prévia atitude humilde dos que dela participam. Tanto a atitude de humildade ditada pela emoção e por valores, como a relação concreta de solidariedade entre os seres humanos dela decorrente deveriam repetir-se todos os dias do ano de todos os anos e não, apenas, durante uma data aprazada, com o efeito - em geral inconsciente, é verdade - de reforçar as assimetrias de poder, prestígio e dinheiro no restante do ciclo. Considerando tais circunstâncias, aquele que lava os pés não deveria imitar o Cristo, que faz uma concessão temporária para fins de conversão de Seus seguidores, mas seguir o Cristo que propõe uma relação de igualdade projetada para a eternidade”.

              Cristo desenvolve, durante o Lava-pés, como em quase toda a História Sagrada, a pedagogia do exemplo, pois se investe voluntariamente de posição de extrema humildade para, então, ensinar que tal posição, que assume por um instante, deverá ser reproduzida eternamente por seus discípulos, uns com os outros.
 “... Depois de lavar os pés dos discípulos, Jesus disse: ”Ora, se eu, sendo o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros”. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também. Em verdade, em verdade vos digo que o servo não é maior do que seu senhor, nem o enviado, maior do que aquele que o enviou “(João 13:14-16).



                                                                              

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